12 de março de 2014

A morta

Oswald amava Tarsila.

Em 2004, o CPPT (Centro de pesquisa e produção teatral) da Unesp Bauru formou um grupo com alunos dos diversos cursos para a concepção e produção da peça "A morta" (1937) de Oswald de Andrade.

Sessenta e sete anos depois, nas tardes quentes de Bauru, permanecia tentando tornar minha história, nem um tanto brilhante, num sucesso de público e obviamente com um final feliz.

E foi numa dessas tardes que senti o coração saltitando, ao me deparar com a nobre Violeta comprando um lanche na cantina. O diálogo foi breve, seguido de um convite:


Tarsila do Amaral

_Te espero no dia da peça.

Aquela frase ecoou como um sonoro sinal de esperança, de que o ato final da minha peça pessoal seria alí, no dia da apresentação, onde me lançaria sobre o palco e os atores e no meio da multidão, teria minha Violeta nos braços.

Aquele dia foi de grande ansiedade. A Unesp inteira estaria lá a prestigiar o trabalho do grupo CPPT. Um dos rapazes que morava com a gente era um dos personagens de grande reelevância na peça, de onde surgiria do teto do teatro a descer até o palco, fato que lhe rendeu grandes cicatrizes nas mãos pelo efeito da corda, cujo curativo fiz pra estancar o sangue, mas isso é assunto para outro capítulo.

O auditório do Teatro Municipal de Bauru estava cheio. Até noticia no jornal saiu, a peça era um evento bastante esperado. Sentado no canto, enquanto as luzes não se apagavam, pûs-me a buscar com os olhos minha Tarsila, quer dizer, minha Violeta, que fazia parte dos bastidores, e consegui vê-la por trás das cortinas, toda vestida de preto, toda vestida de Tarsila.

A peça em si tinha algo de obscuro. Os personagens eram tão caracterizados, que a impressão é a de que éramos parte da história, de que todos ali pertenciam ao imaginário de Oswald. Assustador!

Ao final da peça, o elenco se reúne no palco. E as palmas estralam num bater incessante. Todos os alunos que participaram na produção, cenografia e parte técnica da peça subiram ao palco e entre eles reluzia um tom Violeta vestida de preto.

Fim de peça, o público demora para sair enquanto atores e os participantes permanecem atrás das cortinas comemorando o grande sucesso que foi. Então, saltei de minha poltrona e caminhei sorrateiramente para o palco, onde subi e o atravessei, passando pelas cortinas.

O que vi do outro lado dos panos foram os atores ainda em suas roupas de personagem comemorando muito, tomando champagne. Mas o meu alvo estava lá em cima nos camarins, cujo acesso se dava por uma escada. Curiosamente percebi que  alguem me observava, um rapaz de cabelos longos e traços orientais. 

No subir das escadas, apontei no corredor e, pausa para um comentário breve: "juro que nunca entendi o ato que se sucedeu"... Violeta me viu lá do fundo, estática sorriu-me, correu e me abraçou! 

"Que bom que você veio"

Meu coração explodiu como fogos de artifício. Oswald sorriu do túmulo. Eu e ela, ela e eu, Oswald e Tarsila, A morta. Nosso abraço foi afrouxando, senti seus braços desfalecendo, e fitando seus lábios, ouvi:

"Agora preciso ir, preciso arrumar as coisas, mas haverá uma comemoração lá na minha república, espero você lá".

Sim, ela me esperaria! como não! ela me ama, não me ama? não.... Mero desejo meu.

Ao sair, o mesmo olhar oriental me acompanhava encostado numa pilastra. Fiquei intrigado, afinal, quem era ele?

Seu nome era Minoru. E ele estava alí pelo mesmo motivo que eu, seu ato final. Fiquei sismado e resolvi me esconder. Foi quando....Violeta desceu as escadas e num beijo nervoso, abraçou-o com tamanha eficácia, que foi o suficiente para me acertar a distância. Cai alí, como o próprio Hierofonte, o mesmo sangue que vi escorrendo pelas mãos do Hierofonte vi escorrendo no meu coração. Terrível! Ela estava acompanhada e o jovem misterioso era seu paquera.

Sai atordoado e encontrei o Minas e o Atibaia (nao vou citar o nome dos meus amigos para preservá-los rs) mas os dois vendo o meu rosto melancólico souberam.

_Xi, deu errado. Ouvi.


Eles permaneceram me aconselhando a não fazer nada, a peça acabou e ninguém queria assistir a um gênero tragédia. Mas a minha vontade foi querer entender, entrar em luta corporal com o oriental, me jogar no túmulo do cenário. Ela saiu bem por ultimo, escoltada por seu garoto, e me olhou sem jeito, sabendo da tragédia que acabara de acontecer alí. Eles foram festejar o sucesso da peça, e eu pedi pra ficar sozinho, corri para um banco de praça, onde tinha uma ponte e carpas laranjas e o céu desabou em água. A gripe que peguei dias depois foi a de menos. Sentei numa velha poltrona da sala da república e lá fiquei até o amanhecer, pensando em Tarsila, em Oswald e em Violeta. A morta se chama coração.



2 comentários:

  1. Tantas pessoas já me mataram sem perceber (ou percebendo tarde demais) que eu me pergunto se (e quantos) já matei alguém e não vi.

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