16 de abril de 2011

O primeiro dia da primavera



E o seu vestido branco marcou eternamente a minha memória.

***

A escada de madeira balançava com o ritmo compassado das crianças. Dentro da sala ouvia-se o hino nacional cantado no extenso pátio, resquícios ainda de uma época a ser esquecida. Fazia menos de cinco anos que a campanha das Diretas Já tomou as ruas e avenidas, os canais de televisão e as estações de rádio. Não existia mais a ditadura naquela época, não para a nação brasileira, mas para mim, a ditadura se resumia numa mulher de cem quilos, cabelos loiros e curtos, a que se acunhava de professora.

Maria Aparecida Ferreira Takigawa, não esqueço seu nome, mesmo passado mais de vinte e um longos anos. A mulher era o diabo em pessoa, parecia um daqueles coronéis da tortura na época militar. Vivíamos num regime militar peculiar, não marcado com pau de arara e choques elétricos, mas com beliscões e puxões de orelha. O seu alto tom de voz fazia o chão da sala tremer. E eu na minha inclusão pessoal achava tudo aquilo terrível. Ela não era japonesa, era mulher de japonês. A diaba era loira de olhos azuis profundos e cerrados, gorda que só, com aquela bunda enorme, e humor altamente irritável. 

A única coisa que chamava a minha atenção naquele espaço em que permanecia cinco horas diárias, era o jardim da entrada, que eu contemplava todos os dias através da janela, mas não era primavera e as flores ainda não embelezavam a entrada. Estavamos no outono e as manhãs eram frias, mas davam espaço a um sol tímido que melhorava o clima. E foi nesse exato momento de contemplação que tudo mudaria, como num carrossel de parque de diversões, onde ora vem um cavalo, ora o urso, tudo num pequeno ato.

Alguém bateu na porta:

_ Professora, essa é a nova aluna da turma.

Disse a inspetora com seus óculos gigantes. Desvirei meu olhar para a porta e observei a nova colega de classe.

_Qual é o seu nome?

Perguntou-lhe a professora.

_Beatriz*.

Disse timidamente a garotinha.

A professora dirigiu-se até a menina e soltou numa voz estridente:

_ Alunos, essa é  Beatriz, a nova coleguinha de vocês. Tratem -a bem, entenderam?

A criançada balançou a cabeça afirmativamente.

A nova colega estava com um vestido branco e sapatilhas. Tinha uma franja enorme e uma tiara azul. Ela tinha uma mochila emborrachada da 775. Como alguém com nove anos de idade tinha uma mochila da 775? eu sempre quis ter uma mochila dessas.

_Você!

O Chão tremeu de novo. Ouvi a voz estridente estremecer também os alicerces do prédio escolar e um dedo apontou em minha direção.

_Eu?

Falei balangando os dentes.

_Sim você. Pule uma carteira para trás e deixe sua nova colega sentar ai.

Obedeci a querida e doce professora, pulando uma carteira para tráz.

A garotinha se ajeitou enquando a voz estridente pedia silêncio. E no meio daquele pequeno tumulto, escutei pela primeira vez a sua voz:

_Você tem um lápis para me emprestar?

Ergui os olhos e o primeiro dia da primavera aconteceu naquele instante. Algo inexplicável aconteceu. Ao deparar-me com os seus olhos, e decifrar as palavras saindo de seus lábios, uma súbita energia tomou conta do meu corpo de nove anos de idade, uma eletricidade constante, um dispararte cardíaco, e aqueles olhos castanhos me fizeram mergulhar em algo que até hoje, passado muitos anos não sei descrever. Foi a mesma sensação que tive, vinte poucos anos depois, quando mergulhei naquele mesmo olhar, sentado no banco de uma praça e a palavra Júlia, ela vai se chamar Júlia era proferida pelos mesmos lábios do olhar.

Retirei um lápis do estojo e entreguei em suas mãos. Os dedos ainda resvalaram enquanto ela voltava para a direção da lousa. Enquanto isso, a sensação me consumia imensamente. Era uma sensação boa, esquisita e inquietante. Do lado de fora, olhei novamente o jardim. Estava florido, cheio de flores, e no meio do outono, tivemos o primeiro dia da primavera.

***


Um comentário: